Crônicas do 2º Apocalipse - A Luta por um Jantar Patriótico

 

 Escrito e ilustrado por Renan Morgado

Podia ser considerada uma vila ou uma pequena cidade para as dimensões do Paraíso. Mas em outros lugares seria uma megacidade. Monsros saiam e entravam dos túneis e vias entre o subsolo e a superfície dominada por construções produzidas em massa, de concreto e de madeira petrificada em estilo liso, paredes grossas e de altura baixa de três e quatro andares, exceto os edifícios da burocracia e administração militar que eram mais altos e imponentes. As vegetações de ervas daninhas, musgos e fungos de existência recente cobriam os edifícios, entre as propagandas em neón ou posters para a grandeza da civilização e esforços de guerra, e entre as fitas e bandeiras brancas, com vermelho ou preto, e com o símbolo da Criadora. Uma borboleta em formas retas e rígidas. Como no alto de um pedestal, a estátua dourada desta borboleta.

Uma monsra admirou um novo pedestal recentemente erguido. Ela percebeu rápido quando a pequena mão se soltou da sua. Seu filho de poucos anos quis acariciar um animal doméstico e tropeçou. Ela chegou, verificou e garantiu a ele que não estava machucado. Ela o ajudou a levantar, o animal tripede e sem olhos se aproximou. A mãe permitiu o filho a acariciar-lo que gostou muito da atenção.

- Vamos querido. Temos que dar o melhor jantar para o papai. - Ela disse a seu filho.

Mas eles encontraram uma longa fila para passar pelo posto de inspeção naquela via. O trânsito de ônibus e monotrilhos interrompidos e por isso todos deviam se mover a pé. Enquanto esperavam na fila, policiais colocavam barricadas e divisórias com a ajuda de animais treinados e blindados para controlar a multidão nas calçadas. A mãe observou o uniforme dos policiais, vestidos totalmente pretos e brancos e óculos de lente vermelha e armados com bastões elétricos e pistolas. Para ela, eles tentavam intimidar com pose e os grandes óculos.

Os passos pesados com o som de peças de metal.

- Veja querido. Um Aufuruó. - Ela levantou seu filho em seus braços e apontou.

O Aufuruó andava com seus passos desajeitados pelo asfalto. Um soldado fiel a Criadora que conseguiu ser recuperado e melhorado para além de sua condição física antes de os inimigos terem o aleijado seriamente. A pesada armadura feita de metais orgânicos e cerâmicas vulcanizadas em conjunto com sistemas conectados a dimensão do ciberespaço. Este armado com um lançador de mísseis nas costas, um canhão que ela nunca entendeu a ciência de expelir a energia antagônica entre matéria e anti-matéria, e no outro braço… Devia ser uma arma abençoada!

- O punho do braço esquerdo dele, querido. Foi feita por Criadora.

- Então ele consegue aplicar um soco superpoderoso como nos desenhos da televisão?

- Sim, ele faz isso. Eu vi uma vez, um Aufuruó destruir um grande grupo de coisas de luz com um só golpe contra o chão.

- O alerta de terrorismo está alto com este desfile. Deviam cancelar. - Um monsro comentou a outro próximo na fila.

- O desfile deve ser feito. A divisão quase foi aniquilada pelas coisas de luz.

- Não foi a Cisprer.

- Não ouvi nada sobre Cisprer.

- A Cisprer atacou nossos soldados quando eles recuavam. - Outro monsro quis explicar. - Por isso as perdas.

- Tomara que eles possam lutar novamente como este Aufuruó.

A mãe ficou pensativa após ouvir estas informações.

- Mamãe? - O filho a chamou atenção.

- Está tudo bem querido. - Ela o assegurou.

Muitas horas depois, foi a vez da mãe e da criança no ponto de controle. O monsro e a monsra policiais que os receberam estranharam, trocaram olhares. A mãe sabia o que aqueles guardinhas pensavam.

- Documentos, por favor. - O policial disse. Ela entregou os dela e do filho para análise em um computador.

- Seus nomes? - A policial perguntou. Os vasculhando com um detector de materiais pesados.

- Eu sou Joani de Mar e ele é Hergon de Mar.

O detector apitou na mão de Joani que revelou a prótese escondida por ataduras. A policial afirmou que não encontrou nada e voltou ao seu posto ao lado do policial. Este mostrou os documentos próximos e trocaram um cochicho. Liberaram ambos.

- Vamos, querido. Temos pouco tempo para chegar ao Centro. - A mãe apressou, o guiando pela mão.

O Centro de Distribuição, pelo seu tamanho largo de dez andares e parecido com um bunker, servia de guia para Joani e Hergon andarem pelas vias lotadas.

- Segura na minha mão. - Joani pediu. Mais e mais monsros se aglomerando com as vias sendo fechadas pelos policiais. Direcionando mais e mais monsros para umas poucas vias. Joani se preocupava a medida que se distanciavam do Centro de Distribuição. A mão de Hergon escapou da sua. - Hergon!

- Mamãe! - Ela o ouviu se afastando por um fluxo contrário.

Ela se desesperou, empurrando a todos ao seu redor.

- Quem você pensa que é?! - Uma monsra, irritada, a segurou pelo braço. Joani se libertou rapidamente. Mas não ouvia mais Hergon.

- Hergon? Hergon? Hergon? - Ela gritou bastante.

- Mamãe!!! - Ela o avistou. Hergon tinha subido um pedestal e ficado aos pés da estátua da Criadora.

Ela o pegou em seus braços e o abraçou muito.

- Garoto esperto. - Ela o elogiou. Olhou para a estátua de Criadora antes de olhar para os olhares de seus parceiros civis. Cochichando e encarando com reprovação.

Ela levou Hergon nos braços, dificultando em se perderam de novo. Entretanto ficando mais visíveis para a reprovação alheia. Conseguiu um caminho em direção ao Centro. Mas tiveram que sair desta via.

Almas em condição de escravas colocavam os enfeites para a celebração, sob forte vigilância de policiais e guardas. Não havia nenhum caminho direto para o Centro de Distribuição que estava logo atrás de um quarteirão. Se pudessem atravessar um destes prédios. Fechados. Com exceção de um prédio onde monsros sentados na porta e janelas abertas. Talvez houvesse uma porta dos fundos.

Mais próximo do alvo. Ela percebeu problemas. Eram um monsro fumando um cachimbo e sentado na porta, um monsro de braços cruzados e sentado em uma cadeira e uma monsra bebia uma garrafa na janela. Pareciam os principais entre os monsros naquele local. Ela reconhecia o olhar de todos eles. Lutaram por Criadora e por muito mais tempo do que ela. E não podem mais fazer isso. Os olhos de vidros entre os olhos principais e os olhos secundários originais. Os três principais vestiam suas trench coats de oficiais, o luxo e apetrechos estragados, mas ainda demandando respeito e obediência. O monsro na cadeira tinha as duas pernas e boa parte do rosto em prótese de carbono, olhos e a parte da boca pintados. Os olhos vivos, de vidro e pintados notaram a pequena família se aproximando. Assustaram Hergon. Joani o acalmou. Eles transmitiam ressentimento, provavelmente não foram aceitos para o Processo Aufuruó. Os outros monsros e monsras deram espaço.

- Você quer alguma coisa? - O ex-oficial na cadeira perguntou, sua voz ainda carregada de autoridade e rigidez.

Joani se apresentou, apresentou seu filho e ditou a sua intenção. Se sentia como tivesse que justificar aos seus comandantes no exército.

- Por que seu filho não está em uma creche? - O ex-oficial na cadeira questionou.

- Eu e meu marido conversamos e preferimos que eu ficasse em casa e ensinasse os ensinamentos da Criadora pessoalmente.

- E por que justamente você? - O monsro ex-oficial com cachimbo perguntou.

Joani mostrou sua prótese metálica:

- Bom… A proteção de Criadora não me alcançou totalmente.

- Eu somente parei depois que a proteção não alcançou minhas costas. - O ex-oficial na cadeira disse. Joani percebeu as rodas nos pés da cadeira. - Todos aqui teriamos continuado, mas o Processo Aufuruó causou danos demais a todos aqui. Eu. Não fui selecionado porque as coisas de luz tiraram demais de mim.

Joani suspirou, suas suspeitas confirmadas.

- Se acha melhor do que os professores das creches? - A monsra ex-oficial perguntou.

- Todos eles são burocratas. Não confio quem nunca esteve nas linhas de frente em ensinar realmente. - Joani respondeu.

Os ex-oficiais se olharam, não convencidos. O ex-oficial com o cachimbo perguntou:

- E onde está seu marido?

- Ele está vindo com o que sobrou da divisão dele. - Joani explicava, Hergon se encolheu com o pensamento ruim. O ex-oficial na cadeira notou:

- Vocês não sabem se ele ainda está vivo.

- Mas também não recebemos notificação que ele não sobreviveu. - Joani olhou para cada um dos ex-oficiais e ex-soldados em volta. - Eu e meu filho queremos chegar ao Centro de Distribuição e conseguir mais comida para honrar pelo serviço que ele prestou e enfrentou por Criadora. Assim como a cidade quer honrar todos nossos soldados que enfrentaram as coisas de luz e sobreviveram onde outros não.

Os veteranos se olharam, ainda dúvidas. Joani pensou enquanto verificava seu filho. Ela se lembrou de um fato e exprimiu a ideia:

- O que eu e meu filho queremos fazer é um ato pequeno. Mas Maci diz que com pequenos atos, podemos fazer grandes coisas. - Ela tomou a atenção dos veteranos. - Mesmo Criadora tem a mãe dela. Cuidando das creches e dos programas para o suporte a mim e a vocês. Isso é o que a união de uma mãe com a sua criança pode fazer.

Os veteranos se olharam e pensaram. O ex-oficial na cadeira pensou e comentou:

- Se todas as almas fossem como Maci, esta guerra nem aconteceria. Eles podem passar.

O ex-oficial com cachimbo liberou a entrada. A ex-oficial com a garrafa guia Joani e Hergon para a outra entrada daquele prédio. O Centro de Distribuição em frente, um grande relógio marcando uns poucos minutos para o fechamento.

- Não temos mais alimento em estoque. - Uma Burocrata Avançada disse a eles. - Cisprer tem bloqueado os nossos fluxos de suprimentos nos últimos anos.

- Estamos cercados? - Hergon perguntou, Joani o acalmou. Muitos monsros e monsras amontoavam a sala de espera e a entrada. Tentavam negociar com os burocratas que repetiam que não terem comida.

- Muito obrigada pelas informações. - Joani agradeceu.

Ela e Hergon tomaram um caminho longo por causa dos bloqueios e pontos de controle. A Luz do Paraíso diminuía-se no horizonte, a noite chegava. Joani ficou pensativa enquanto multidões se formavam para assistir a celebração.

- Mamãe. O que vamos fazer? - Hergon perguntou.

- Vamos para casa e esperar por ele lá.

Horas dentro da noite. Eles andavam pelo estreito corredor do apartamento subterrâneo deles. Os cristais iluminavam fortemente e as plantas fosforescentes contribuíam com iluminação azulada. Passaram em frente a extensão do Centro de Distribuição que se encontrava fechada naquele local. Hergon sentia a tristeza de sua mãe pelo silêncio e a mão ausente apesar de o guiar. Joani ainda tentava encontrar soluções. Mesmo que seu marido não chegasse, pelo menos eles teriam um bom jantar.

Joani abria a porta do apartamento. Percebeu que uma das plantas estava fora de lugar, criando um ponto muito escuro. Mas conseguiu disseminar uma silhueta.

- Hergon. Atrás de mim. - Ela tentou falar o mais baixo possível.

- Não, Joani. Sou eu. - Uma voz masculina veio do quarto.

- Himlo? - Joani reconheceu. Ele chegou ao .

Um monsro com roupas gastadas, uma blusa branca e uma calça cinza de soldado.

- Olá, querida… - Ele disse, Joani correu aos seus braços.

- Este é o papai? - Hergon perguntou.

Himlo chorou vendo seu filho:

- Hergon… Não acredito…

Ele abraçou seu filho. Joani se uniu aos abraços.

Entraram no apartamento, pequeno, quarto de dois colchões no chão separados da cozinha por um balcão e somente o banheiro estreito em separado. O jantar muito humilde com o pouco que tinham. Foram várias as histórias e as emoções contidas sobre os anos em que ficaram longe.

Tamanha carga emotiva cansou Hergon, adormeceu em um dos colchões. Himlo o acariciou. Joani os observou, sem saber qual a emoção que devia ter. Batidas na porta.

- Eu atendo. - Ela disse, mais próxima da porta.

- Joani. Tenho que contar…

- Eu sei. - Ela disse ríspida e abriu a porta.

Policiais com bastões elétricos acompanhados de um oficial do exército.

- Senhorita Joani? - Um policial perguntou.

- Sim. Ele está ali. - Ela apontou para Himlo.

- Não… Joani... Eu apenas queria ver vocês.

- VOCÊ ME TRAIU! Era para você lutar por Criadora!

- Todos da nossa divisão foram mortos pelas coisas de luz. Eu teria morrido e nunca mais ter visto vocês!

- Eu perdi isso aqui e ainda queria lutar! - Joani mostrou sua prótese. - Eu aceitei porque acreditei que você lutaria com mais força conhecendo o nosso filho em casa! Enquanto eu tentava de toda forma achar um jeito de contribuir por Criadora!!! Você não tem ideia do que é criar uma criança e ter todos a odiando todos os dias.

Hilmo sem palavras e olhou Hergon totalmente acordado.

- Senhor Hilmo de Mar. O senhor está preso por deserção. - Um policial entrou com o oficial militar.

Hilmo se entregou. Algemaram suas mãos. Olhou para Hergon, chorando bastante.

- Hergon…

- Você é uma vergonha para Criadora e a todos! - A criança gritou com todas as forças.

- Você realmente ensinou ele muito bem. - Hilmo disse a Joani que abraçava Hergon.

Os policiais o retiraram do local. Joani fechou a porta. As suas pernas colapsaram diante das força de suas lágrimas. Sentada ao pé da porta, se fechou em choro. Hergon a consolou. Se abraçaram em lágrimas por toda a noite.


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